sexta-feira, 18 de fevereiro de 2005



Parte 01

Hoje eu a vi muito cedo. Era sete da manhã. Mais precisamente sete horas e dois minutos, porque levei 3 minutos pra subir as escadas até o sétimo andar, e quando entrei na cozinha e olhei para o relógio na parede era sete horas e cinco minutos. Ela estava saindo do elevador no hall do prédio, estava indo pra escola, devia estar atrasada, passou do meu lado, olhei para o seu rosto pela primeira vez. O seu cabelo liso estava amarrado, e acho que ela não tinha tomado banho e nem tomado café. Se pudesse eu chamaria ela pra subir no meu apartamento, e tomar um capuccino ou um suco de laranja. Mas acho que ela não ia aceitar, porque ela não me conhece e não ia me acompanhar sete andares acima. Eu odeio elevadores. Tenho que descobrir qual o andar que ela mora.

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Depois do café eu fiquei a manhã toda sentado no bar do Pedro, que fica do outro lado da rua. O dia estava calorento, e as cadeiras ficam sobre a calçada e o sol numa determinada hora do dia vence a sombra do bar e esquenta as mesas e as cadeiras de metal. Mas eu não podia sair do sol, precisava ver ela chegar. Comi algumas porcarias do bar, só tinha petiscos e tomei pouca água mineral, não queria fazer xixi e ter que levantar da mesa e usar o banheiro fétido ao lado. Queimei um pouco porque estava sem protetor solar, minha pele é muito branca, e eu odeio o sol. Devia ser mais de 13 horas quando vi ela cruzando a esquina, me levantei pra atravessar a rua, então o Pedro do bar gritou meu nome, eu tinha esquecido de pagar a conta, joguei uma nota de cinquenta reais sobre a mesa, quando ele gritou "Esqueceu o troco !" eu já estava do outro lado da rua. Ela já estava entrando na elevador. Fiquei olhando para o contador digital dos andares que iam mudando, foi quando chegou no oitavo andar. Ela mora em algum apartamento acima do meu: 801, 802, 803 ou 804. O meu apartamento é o 704.

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Meu apartamento é bem espaçoso. Minha mãe morreu de derrame no ano passado, então vivo só. Tenho direito a uma pensão que herdei da minha mãe aposentada. É um bom dinheiro que recebo por mês, tenho direito a esse dinheiro porque tenho problemas, dizem que sou débil, dizem que eu não devia morar sozinho, mas uma vez por semana a tia Marina passa aqui em casa pra ver como estão as coisas e já tenho um cartão do banco onde posso comprar quase tudo pela internet. Queria trabalhar sabe, mas não gosto de muitas pessoas, odeio aglomerações, odeio transito, pegar metrô, mas não sinto mais medo de chegar perto dela. Ela mora em algum lugar acima da minha cabeça. Oitocentos e alguma coisa.

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Entrei na seção de cds de uma loja virtual e comprei 2 títulos, o da Arca de Noé volume 1 e 2, que são os melhores discos do mundo, tem vários cantores de MPB, é bem melhor que as coisas que são feitas hoje, não sei se ela gosta de MPB, deve ter uns 16 anos, mas é um ótimo presente. Também comprei um sofá novo, isso tudo pela internet, porque quando a gente estiver ouvindo os cds, eu queria que ela sentasse num sofá novo. Comprei um sofá vermelho de três lugares, acho melhor deixar um lugar vazio no meio, porque ela pode se sentir intimidada com a minha proximidade, porque eu sinto isso também quando estou com estranhos. Mas não acho ela estranha, porque eu a amo. Dizem que pra cada pessoa no mundo existe uma outra pessoa que é a nossa outra metade. Então acho que ela é a minha metade.

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Agora a noite eu subi até o oitavo andar, fiquei lá alguns minutos. Quando ouvi a porta do 802 destrancando, corri até as escadas e fiquei entre o sétimo e o oitavo andar. Era uma velha, e pude sentir um cheiro estranho saindo do apartamento. Era cheiro de gato, ela devia ter vários gatos, é uma velha que mora sozinha, acho que se chama Mirtes, eu sei disso porque quando minha mãe era viva, ela veio no meu apartamento procurando um dos seus gatos. Eu odeio gatos. Gatos são traiçoeiros, não são fieis, são interesseiros. Gosto de cães porque o cão é fiel ao dono até a morte. Mas não são mais inteligentes que os gatos, eu acho que os gatos manipulam a mente das pessoas, as pessoas se tornam escravos dos gatos, não tenho remorso de ter matado o gato da velha do 802, aquele gato entrou no meu quarto pela janela de cima, eu lembro que enrolei ele no meu cobertor, e o joguei pela janela. Fiquei muito assustado com o gato, minha mãe me deu um remédio para os nervos e só acordei outro dia. Mas isso já faz quase uns 10 anos, e nem contei pra ela sobre o gato. Hoje eu tenho 28 anos, 4 meses, e dois dias de vida, e ainda odeio gatos.

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Então foi assim que eu descobri onde ela morava. No 804 mora um casal com um bebê pequeno, no 801 uma coroa solteira, no 802 a velha dos gatos e no 803 vive o meu amor com o seu pai , mãe e um irmão de 6 anos. A coroa solteira do 801 me surpreendeu na escada porque sua porta fica de cara pra escada e me perguntou "Está procurando alguma coisa ?". Fui correndo andar abaixo, nem olhei para trás, tranquei a porta, e fui tomar o meu remédio. Então eu ouvi alguém batendo na porta, meu apartamento não tem campainha, por que eu fico assustado com o barulho. Então continuaram a bater na porta, devia ser a coroa, e vi no olho mágico que não era a coroa do 801, eram dois homens dentro de uniformes azuis. Perguntei:
"O que vocês querem ?"
"Viemos entregar um sofá que o senhor Onofre Castanheiras encomendou. Ele está ?".
"Pode deixar no corredor"
"O senhor precisa assinar a nota"
"Passe por debaixo da porta"


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O sofá ficou muito legal, em frente a televisão. È a única coisa colorida na minha sala. É a primeira vez que compro algum móvel após a morte da minha mãe. Gosto de móveis coloridos, acho a cor da madeira muito triste, porque a madeira sem estar em uma árvore significa que é uma coisa morta. Não é legal ter uma mesa de madeira morta. Mais tarde chegou os cds. Fiz um bilhete e coloquei na porta do apartamento dela junto coms os cds. O bilhete era assim:
"Oi minha amada do 803. Estou lhe dando esses cds porque são os melhores cd´s do mundo, e espero que queira ouvir na minha casa, porque agora tenho um sofá vermelho novo.
De quem te ama muito.
O seu amor do 704."




continua segunda-feira

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