quarta-feira, 23 de fevereiro de 2005



Parte 04


"Não conheço essa Larissa Souza"
"É uma adolescente moradora do 803. Será que você podia abrir a porta pra podermos conversar um pouco?"


Eles entraram no meu apartamento e sentaram com seus trajes imundos sobre meu sofá vermelho. Não gosto de policiais. Também não gosto da raça humana, são como animais, só que os animais não são cruéis, o ser humano é uma raça piorada dos mamíferos.
"Você mora sozinho ?"
"Não"
"Os vizinhos dizem que você morava com sua mãe até um tempo atrás, desde então mora sozinho"
"Ela morreu"
"Sim, isso nos foi informado. Então quem mora com você hoje?"
"Minha amada"
"Quem ?"
"Minha amada. Minha cara metade"
"Sua esposa ? Namorada ? Será que podemos fazer algumas perguntas pra ela também ?"
"Ela está dormindo no meu quarto"
"Você conhece Larissa Souza ?"
"Não"
"Você pelo menos a viu pelo prédio ?"
"Não"
"Pois bem, se tiver alguma notícia. Está a foto dela. É uma garota de 17 anos, e foi vista a ultima vez usando uma saia jeans e camiseta branca"


Então eles saíram do meu apartamento. Fiquei olhando para a foto deitada sobre a cabeceira do sofá. A foto da tal Larissa Souza, a mesma cara da minha amada. Um truque. Eu não confio neles. Ela é minha, não tenho culpa se ela não quer ir embora. Querem que ela vá embora ? Então perguntem pra ela.

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Botei o cd novamente, a nossa música:
"Lá vem o Pato, Pata aqui, pata acolá, Lá vem o Pato, Para ver o que é que há, O Pato pateta, Pintou o caneco, Surrou a galinha..."
"Há, há, há, há, há, há, há..."
"Já te falei que não gosto quando fica rindo de mim ..."
"No pé do cavalo, Levou um coice, Criou um galo, Comeu um pedaço, De jenipapo, Ficou engasgado, Com dor no papo, Caiu no poço, Quebrou a tigela, Tantas fez o moço, Que foi pra panela..."
"Há, há, há, há, há, há, há, há..."


Então alguém bateu na porta novamente. Fui atender:
"Quem é ?"
"A vizinha do 801"
"Eu não te conheço"
"Você me conhece sim, ficou espionando a garota pela escada, fugiu quando eu abri a porta. Abre a porta que eu quero conversar."


Ela também conhecia minha amada. Queria tomar ela de mim.
"Há, há, há, há, há, há, há, há..."
Parecia que minha cabeça ia estourar com essa gargalhada irritante. Fiquei nervoso e gritei
"Para de rir de mim. Cala essa boca, porra !"

Então abri a porta e a coroa do 801 entrou. Fechei a porta e ela ficou parada no meio da sala. E conversamos

"Você disse que alguém estava rindo de você ?"
"Ela está rindo de mim"
"Não estou ouvindo ninguém rindo. Só essa música infantil"
"Faz ela parar de rir"
"Há, há, há, há, há, há, há, há..."
"Você está bem ?"
"O que você quer ?"
"Eu sei que você sabe da Larissa. Não contei nada pra polícia sobre você na escadaria porque eu era muito amiga da sua mãe. O que você fez com a Larissa ?"
"Ela é minha, só minha"
"Que cheiro podre é esse ?"
"Que cheiro ? Não entre no meu quarto ela está dormindo"


Então ela entrou no meu quarto e viu ela sobre minha cama. E falou gritando:
"O que você fez com ela ? O que você fez com ela !".
"Cale a boca, ela está dormindo"
"Ela está morta filho da puta. Vou chamar a polícia. Sai da minha frente"


Odeio gritos, botei as mãos no ouvido, minha cabeça começou a rodar. Então minha amada começou a rir "Há, há, há, há, há, há, há, há...". Não ia deixar ela chamar mais ninguém. Não ia deixar que levassem a minha amada. Bati com a minha mão na cara dela várias vezes, ela unchou meu rosto que nem uma gata pestilenta, queria arrancar meus olhos, mas fiz ela dormir rápido. Então joguei ela pela janela, que nem fiz com o gato da velha do 802.

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Ela não parava. Ficava rindo que nem uma hiena:
"Há, há, há, há, há, há, há, há...".
"Se você não quer o presente, é só dizer. Se quiser eu jogo fora"
Fui no micro-system e peguei o cds da Arca de Noé e entrei no quarto, abri a janela do meu quarto e joguei os cds no vazio do sétimo andar. Então ela parou de rir sobre a cama. Ficou imóvel e linda com sua brancura.

Quando eu pensei que ia poder ficar em paz, alguém novamente bateu na porta. Fui atender:
"Quem é ?"
"É a dona Gisele do 802"
"O que foi ?"
"Meu filho, tem um cheiro de carniça vindo de sua janela, logo abaixo do meu quarto."
"Que cheiro sua velha ?"
"Cheiro de carniça, cheiro de coisa podre"
"Podre são os seus gatos, animais pestilentos. Animais do inferno"
"Há, há, há, há, há, há, há, há...".
"Pare com essas gargalhadas, maldita. Eu já desliguei o cd."
"Me respeite. Se você não acabar com esse cheiro, eu vou chamar o síndico"
"Quer que eu acabe com o cheiro, então eu vou acabar agora"
"Há, há, há, há, há, há, há, há...".


Abri a porta e fui até o apartamento da velha. Tinha que acabar com o cheiro. Faz anos que todos nós temos que conviver com o cheiro desses malditos gatos. Eram 15 gatos adultos e alguns filhotes que estavam crescendo pelos cantos. Joguei todos pela janela, usei um lençol pra cercar as criaturas, a velha do 802 tentou me impedir mas bati várias vezes com minha mão na cara dela, e ela dormiu. Acabou o cheiro, acabou o cheiro.


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Então me pediram pra escrever tudo o que aconteceu. Porque as vezes eu consigo me expressar melhor com as palavras. Minha tia Marina me visitou ontem aqui nesse lugar, mas não pode chegar perto porque eu estou amarrado na cama. E disse que o que fiz foi errado e que infelizmente não ia ter como voltar para o apartamento, porque eu parei de tomar os remédios, e disse que fiz muitas coisas erradas por conta disso. Mas eu só estava querendo ficar ao lado da minha amada, em nome do amor que eu sinto por ela. Mas não estou chateado porque minha amada as vezes me visita. E as pessoas aqui são legais, porque deixam ela entrar, e ela canta no meu ouvido com a sua voz doce "...Comeu um pedaço, De jenipapo, Ficou engasgado, Com dor no papo, Caiu no poço, Quebrou a tigela..". E ela não ri mais de mim, e diz que me ama, e que vai sempre estar me esperando. Me prometeu que vai ficar sentada no nosso sofá vermelho, onde poderemos ver o Discovery Channel e ouvir quantas vezes for necessário o cd da Arca de Noé. Sem ninguém pra interromper nossas brincadeiras. Só nos dois.

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