quinta-feira, 28 de abril de 2005

A pequena quitinete não tinha divisões internas. Apenas um espaço comprido e o banheiro. Em uma ponta, o banheiro, a pia da cozinha e a entrada do apartamento. Do outro, uma janela. As paredes eram pintadas de creme, limpas e no chão, uma cerâmica barata, rugosa, amarronzada.

Havia um colchão de casal e duas caixas de papelão grandes próximas à janela. Mais próximos à entrada do apartamento, um microcomputador, com impressora multifuncional, joystick, mouse óptico e teclado, todos sem fio. O monitor tinha 19 polegadas. Todos esses equipamentos se apoiavam em suas próprias caixas.

Havia um aparelho de telefone vermelho próximo ao microcomputador, e estava sendo utilizado.

- Desculpe, senhor, mas não poderemos mais lhe entregar pizzas.

- Mas eu gosto da pizza de vocês. Qual o problema?

- Simplesmente não poderemos mais entregar. Há vários bons estabelecimentos de delivery food aqui no bairro, estou certo que isso não será um problema para o senhor.

- Lúcia, isso não faz sentido. O que há, será que você pode me dizer?

- Bem, senhor...eu não deveria dizer, mas...nenhum de nossos entregadores aceita mais entregar pizza para o senhor.

- Por que não? Sempre pago em dinheiro, e sempre dou gorjeta. Nunca fui mal-educado com nenhum deles. Por que isso?

- Ah, senhor, não é possível. O senhor sabe muito bem porque não!

- Calma, Lúcia. Nós falamos quase todo dia a mais de três anos, não é preciso se alterar!

- Nunca lhe dei intimidade, senhor.

- E nem eu estou pedindo. Quero só que me diga o porquê disso!

- Quer dizer que o senhor não sabe?!

- Não faço idéia.

- Estão todos constrangidos, senhor!

- Por que estariam? Nunca fui grosso ou mal-educado, tudo que digo a eles, sempre, é - "o dinheiro está aí no chão. Pode deixar a pizza aí mesmo. Fique com o troco. Boa noite." - e eles sempre respondem "boa noite, senhor" e vão embora. Por que isso?

- Não vou resistir mais, senhor, tenho que perguntar: por que o senhor recebe nossos entregadores pelado, todas as noites?

- O QUÊ?! Então é isso?! Eles querem tirar minha liberdade de ficar como quiser dentro de minha própria casa?!

- Senhor, deve admitir que é constrangedor para um entregador se deparar com um homem nu ao fazer uma entrega. Muitos deles são casados, não gostam dessas coisas!

- Coisas? Que coisas?

- Ora, o senhor sabe...

- Não, não sei. O que há?

- Senhor, não me entenda mal, não temos nada contra sua orientação sexual, isso é algo pessoal, que só diz respeito ao senhor. Hoje em dia o homossexualismo...

- Homossexualismo? Eu não sou homossexual, oras!

- O senhor não precisa negar, somos muito profissionais, não nos importa se o cliente é gay ou não. O único problema é a nudez...

- Lúcia, eu não sou gay. Nunca importunei um entregador de vocês nesse sentido, não sei de onde eles tiraram isso.

- Francamente, senhor, um homem que recebe outros homens nu em sua cama só pode ser o quê, afinal?

- Ouça com atenção, Lúcia. Eu não sou gay, e nunca assediei um entregador seu. Apenas não gosto de usar roupas, o contato do tecido com minha pele incomoda. Agora, pode mandar minha pizza, porque quando o motoboy chegar esse problema estará resolvido.

- Se o senhor diz...está bem, quer de quê?

- Metade portuguesa, metade aliche. O refri, eu quero uma Coca Light.

- São vinte e cinco reais, precisa de troco?

- Não, Lúcia, obrigado.

- De nada, senhor, boa noite.

- Boa noite, e bom serviço.

- Obrigado.

A porta estava aberta, como sempre. O entregador entrou apreensivo. O homem estava sentado na cama, como sempre, mas dessa vez com um edredon no colo. No chão, havia três notas de dez reais.

- O dinheiro está aí no chão. Pode deixar a pizza aí mesmo. Fique com o troco. Boa noite.

- Boa noite, senhor.

Na noite seguinte, o quitinete ganhou um biombo de madeira, que foi colocado entre a pia da cozinha e o microcomputador.

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